Há dez anos fissurando muros

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Os valores estabelecidos no curso da História forjam a distinção de gênero, estabelecem os imperiosos estereótipos de masculino e feminino, impõem regras de comportamento e definem normas para as representações sociais. São biombos a se interpor entre o que se quer ser e o estabelecido que se seja. Meninos e meninas têm papéis definidos, pobres e ricos têm lugares próprios. Romper o modelo implica sofrer. Não foi sem custo emocional que Helio Rodrigues se instalou entre os maiores nomes das artes plásticas do país. Os muros se apresentaram desde muito cedo.

O método formal da escola o aborrecia, embora não tivesse a noção de que se tratava de uma educação para atender às exigências do mundo industrializado. A falta de vocação para o esporte o excluía do círculo dos meninos. Perambulava ensimesmado pela escola, sem norte, sem grupo. Em casa o acesso à arte era zero, apesar da família de classe média. Nem lápis de cor ele tinha. E foi um desses que o colocou de frente para aquilo a que estava predestinado.

Na escola, compartilhava com um menino rico a carteira, à época ocupada em duplas. O colega exibia com orgulho sobre o tampo da mesa a coleção de lápis de cor trazida pelos pais do exterior. Fascinado com a miríade de tons multicoloridos, Helio pediu o amarelo emprestado. O outro fez um risco com o lápis no centro da mesa, como a dividir o território. “Pede para o seu pai trazer um dos Estados Unidos”, respondeu. Estava erguido um muro entre eles. Um muro alto demais para um menino de 10 anos.

Aos 13, se enturmou. A mãe de uma amiga era artista plástica, uma estranha no ninho, apesar do hippismo e do psicodelismo vigentes. Um dia, ela queria ir à praia de São Conrado em busca de inspiração, mas não podia deixar oito adolescentes sozinhos em casa. Lotou uma Kombi. Helio ficou atraído pelas cores. A mulher deu-lhe uma tela, três tubos de tinta e um pincel. “Tome, pinte alguma coisa”, disse. “Pintar o quê? Eu não sei pintar”, ele disse. “Pinta essa ilha aí da frente.”

O garoto fez uma lambança com as tintas, uma maçaroca de areia multicolorida. Mas o resultado causou boa impressão. O veredito: “Garoto, você tem talento.” Nascia o artista plástico, lapidado por aulas de pintura e o cheiro de terebentina. Aos 20 anos, em 1969, faria a primeira exposição individual. No ano seguinte fundou seu próprio atelier, uma escola de artes para crianças e adultos. Em 1987, iniciou a trajetória no mercado internacional. Hoje, soma 37 exposições individuais e 86 coletivas.

Em 2002, após uma de suas exposições, Helio pegou carona com uma mulher da alta sociedade carioca. Na altura da Gávea, uma criança de rua se aproximou do carro. Ela fechou o vidro. “Morro de medo dessas crianças. A gente para e elas vêm pra cima pedir dinheiro”, explicou. Ao desembarcar, Helio caminhou alto de pensamentos até o atelier. O vidro fumê fechado na cara é um muro que se levanta. Um muro alto demais para uma criança de favela. Então ele se viu no lugar do menino, o muro subindo rápido e inclemente.

“O que posso fazer? Eu só tenho a arte”, questionou-se. Mas a arte é identificadora, logo concluiu. Se ela vinha ajudando-o na sua própria identificação, poderia também ajudar crianças iguais aquela. A reflexão foi o embrião de uma iniciativa que há 10 anos vem provocando fissuras nos muros sociais e culturais que limitavam a visão de mundo das crianças da favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.

Com apoio da iniciativa privada, Helio criou o projeto “Eu Sou” e passou a usar as artes para a construção da identidade de crianças e adolescentes com resistência ao ensino formal, distúrbio de comportamento, dificuldade de autoaceitação. Alguns, inclusive, eram iniciantes em ações marginais.

Olhar

Entre as crianças do projeto, a estética da sociedade do asfalto, dos que estão fora da favela, reina soberana sobre a pobreza, a sujeira, a violência, a falta de educação, a falta do privado. Tudo é escancaradamente público na favela. O projeto é um espaço de arte onde se lida com estéticas, mas essas crianças se viam incapazes de produzir alguma estética “louvável”. Paredes sem reboco, valas abertas, lixo, será que podem competir com o bem pintado? “Bonito é piso de porcelanato, lisinho”, sentenciou um menino nas discussões dos conceitos de belo e feio.

Era preciso rever esse olhar, urgente. Helio passou a estimular o olhar dos alunos sobre eles mesmos. Propôs que se imaginassem uma semente lançada sobre o solo da arte. Em seguida, deitados sobre um grande papelão, cada um procurou uma posição que fosse a representação do próprio renascimento, agora contaminados por esse novo solo. O contorno dos corpos foi recortado e preenchido pelas próprias crianças com materiais que pudessem representar a ideia de renascimento através da arte.

Os 80 contornos foram expostos em forma de uma grande mandala tridimensional no pátio da Farmoquímica, empresa patrocinadora do projeto. “Após essa intensa relação entre os alunos com seus próprios registros criativos, promovemos uma nova etapa: a revisão da qualidade do olhar que todos nós estabelecemos com o entorno, com o que nos envolve”, diz Helio. “O desenvolvimento de um olhar criativo sobre um pequeno espaço pode ser uma importante colaboração para se enxergar o extraordinário dentro dele e em seguida ampliá-lo para fora dele.”

Voltaram então ao piso, não o de porcelanato, mas ao piso comum, cimentado, em geral com remendos, manchas, rachaduras, texturas. Munido de pequenas molduras retráteis de cartolina preta, as crianças se debruçaram sobre um metro quadrado do piso, emoldurando pequenos pedaços, criando verdadeiros recortes de olhar sobre o “imperfeito”. Na medida em que emolduravam, descobriam diálogos plásticos entre cinzas, ranhuras, pingos ou manchas. “Caramba, são quadros! Muitos quadros!”, disse uma delas.

“Olha que só visitamos um metro quadrado. Imagine todo esse piso e essas paredes”, Helio respondeu. Saíram caminhando guiados apenas pelo olhar, que, por estar “emoldurado”, fazia com que as “imperfeições”, quando recortadas, fossem retiradas do contexto que as nomeava. Durante esse passeio estético, um homem que varria um corredor perguntou do que se tratava aquela inusitada caravana. “Estamos procurando beleza nas coisas que costumamos chamar de feias”, respondeu uma criança no instante mesmo em que mais um muro ia ao chão.

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