Transformação, ferramenta da arte

“Grave o seu nome, seu traço e reconheça a sua cor preferida. Num instante seguinte, mude de cor e de traço; se quiser, mude até a forma como desenha o seu nome. Descubra a liberdade de se transformar e de fazer a sua própria história”.

Certa vez, num grupo de crianças entre 9 a 11 anos de idade e com uma autoritária liderança por parte de um dos seus componentes, foi proposto pelos professores o exercício “telefone sem fio” como uma atividade para desarticular a incômoda liderança instalada naquela turma.

Havia um menino de 10 anos que controlava os desejos e reprimia constantemente as iniciativas da turma, mas que ao mesmo tempo demonstrava uma intensa dificuldade para lidar com tudo que significasse transformação. Seu comportamento naquele ambiente de arte, se caracterizava por uma luta constante e bastante difícil pela permanência de ações e pensamentos, tanto dele quanto do grupo, no mundo das “coisas”, ou seja, no mundo concreto.

Ao ser sugerido o “telefone sem fio” como atividade, quase todos, justamente por estarem sob seu comando, resistiram, dizendo que se tratava de algo sem graça, no mínimo idiota. Mesmo assim, sob protestos, os professores continuaram.

Para dar inicio um dos orientadores criou então uma frase bastante concreta, mas que podia ser facilmente relacionada com o universo da arte e que poderia contrapor à “coisa pela coisa” ali estabelecida:
“Gesso é branco e seco”.
Disse o professor propositalmente bem rápido no ouvido do aluno ao seu lado, para que o significado fosse intencionalmente se perdendo enquanto a frase atravessava o grupo.
Durante a trajetória, foram inúmeros os alunos que, ao receberem a expressão com pouca clareza disseram:
-Não entendi nada!
Então os professores explicaram que não era mesmo para entender, mas escutar e passar o som ou a frase como percebeu para o colega seguinte, mesmo que parecesse absurda ou sem um significado conhecido.
Até completar o circulo, era visível o incômodo que ia sendo gerado entre eles e especialmente no pequeno autoritário.
No final foi construído um som; uma palavra estranha: “Cecutunhê”.
Foi então proposto pelos professores, significá-la. Colocá-la numa frase ou dentro de uma historinha qualquer para que ela deixasse de ser “estranha” para virar alguma coisa.
– Alguma coisa? Que coisa? Ela não pode ser nada! É só uma coisa maluca…inventada. Disse o pequeno líder ameaçado.
Um dos professores então respondeu:
– Ah amigo!…não te contei! Impressionante! Meus dedos do pé estavam doendo e coçando tanto ultimamente, mas tanto mesmo, que eu não aguentei e fui a um médico ontem.
Sabe o que ele me disse?
Que eu tenho “cecutunhê”.
Todos riram.
– Comi um “Mc lanche feliz” e o brinde era um “cecutunhê”…adorei! Disse uma criança quebrando a barreira do óbvio e assim se aventurando pela imaginação.

E assim lentamente, mas às gargalhadas, foram sendo criadas frases e situações aonde o “som estranho” virou palavra e a cada novo momento ela foi sendo ressignificada.

Talvez essa, assim como tantas outras propostas, seja uma boa maneira de se apresentar o poder transformador que tem a arte especialmente para quem ainda não teve a oportunidade ou, como no caso desse menino, resiste com medo de entrar em contato com ela.
Apenas teorizar sobre a importância da liberdade e do tão necessário descompromisso para se poder fazer arte pode não sair do discurso e se perder na retórica e nunca vir a se constituir verdadeiramente em uma ação.

Crianças que vivem na miséria, num mundo inóspito, sem acolhimento e por vezes até amedrontador, como tantas que se desenvolvem à margem da sociedade estabelecida ou mesmo outras, que apesar de economicamente privilegiadas, também vivem à margem do afeto e dos limites que lhes poderiam proporcionar contorno, veem muitas vezes a arte como uma experiência “perigosa”. Talvez essa sensação de perigo, esse medo ocorra porque a arte incita à reflexões e consequentemente às transformações.

A transformação é uma característica da arte e permeia todas as ações artísticas. Já as cópias apenas reafirmam o mesmo, apesar de tantas vezes serem confundidas com arte. Cópias promovem apenas a repetição de objeto a objeto, ou seja, não são internalizadas, não passam pelo sujeito e só ela, a subjetividade dá legitimidade e pode produzir arte.

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